Por Maria Valéria Duarte de Souza* via Portal Vermelho em 12/02/2016
Quando Jenny e Karl se conheceram, ele era ainda um garoto, colega de escola e amigo de Edgard, irmão mais novo de Jenny. Frequentando a casa dos Von Westphallen, Marx entra em contato com as ideias defendidas pelo Barão Ludwig, pai de Jenny. O Barão, que defendia ideias que, para a época, poderiam ser consideradas até subversivas , ficou fascinado pelo temperamento irrequieto e curioso daquele jovem.
Jenny, além de muitíssimo inteligente e culta, era também muito bela, sendo a mais cortejada jovem de Trier, cidade prussiana que ainda tinha viva na memória a luta de resistência contra a ocupação pelas tropas napoleônicas. O período de ocupação francesa (franzosenzeit) foi definitivamente encerrado em 1814, ano de nascimento de Jenny, quando as tropas francesas foram expulsas pela Befreiunskrieg (Guerra de Libertação). Foi nesse ambiente de efervescência política que Jenny nasceu e cresceu. Segundo o consenso de seus biógrafos, sua educação fora pautada pela tradição, como convinha a uma filha de família aristocrática, recebendo aulas de francês, de música e outras habilidades condizentes com sua classe social. No entanto, sua casa era também ambiente de acaloradas discussões políticas e intelectuais nos saraus e festas realizados sob o patrocínio do Barão Von Westphallen, sem falar na vasta biblioteca onde, na adolescência, Jenny teve acesso a obras de autores clássicos, bem como de autores que expressavam as principais ideias de seu tempo. Voluntariosa e decidida, Jenny possuía opiniões próprias e isso ficou bem claro quando, aos 17 anos, escandalizou a sociedade de Trier rompendo unilateralmente um compromisso de noivado com um militar.
A proximidade entre Jenny e Karl, cultivada a princípio como terna amizade ao longo dos anos em que ele frequentava a casa dos Westphallen, evidenciou entre eles afinidades que permaneceriam ao longo de suas vidas. Uma vida compartilhada que, pode-se dizer, teve início em 1836 quando Karl, então com 18 anos, às vésperas de sua ida para a Universidade, propõe casamento a Jenny, então com 22 anos.
O casamento, de fato, só aconteceria sete anos mais tarde, em junho de 1843 em uma igreja protestante na cidade balneária de Kreuznach, situada a 80 Km de Trier.
Aqui, poderíamos nos deter um pouco mais nos detalhes sobre a verdadeira saga em que se constituiu a vida dos Marx, marcada por dramas e tragédias familiares que caminharam lado a lado com a elaboração de uma monumental produção teórica que permanece atual ainda em nossos dias.
Mas, o objetivo desse pequeno texto, que se pretende também uma homenagem, é destacar o importante papel que Jenny Marx desempenhou ao demonstrar por várias vezes e de forma inequívoca, a compreensão da tarefa histórica dos trabalhadores na construção de uma nova sociedade.
Companheira de Marx por 38 anos, Jenny jamais ficou a sombra de seu marido. Nos meios revolucionários, era respeitada e admirada. Não foi apenas colaboradora na obra de Marx, ao traduzir seus textos para o francês (Marx escrevia em alemão), decodificando inclusive sua incompreensível caligrafia. Era também sua interlocutora, emitindo sempre opiniões aguçadas sobre temas complexos.
Mesmo nos períodos em que experimentaram situações extremas que beiravam a penúria, a casa de Jenny e Karl estava sempre aberta para reuniões politicas ou para abrigar temporariamente fugitivos da repressão que , nas várias cidades por onde passaram, atingia o movimento e a organização política dos trabalhadores.
Muitos desses episódios nos são apresentados com maestria e farto embasamento documental no livro de Mary1 Gabriel: Amor e Capital – a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução (Editora Zahar:2011). Nele, a autora desmistifica uma ideia errônea segundo a qual Jenny seria uma aristocrata entediada que, ao casar-se com Karl Marx, passou o resto da vida a arrepender-se por ter deixado uma condição de opulência. Se sua origem aristocrática é inegável, esta não foi impedimento para que construísse suas próprias ideias . É certo também que teve sempre o apoio de seu pai ( ele e seu irmão Edgard foram os únicos na família de Jenny a aprovar o seu casamento com Karl). Aliás, foi na casa de Jenny, nas intermináveis conversas que tinha com o Barão Ludwig, que seria seu sogro e a quem, posteriormente dedicou sua tese de doutorado, que Karl Marx ouviu pela primeira vez a palavra “socialismo”.
É preciso também que se desconstrua a ideia de que Jenny, a moça “bem nascida” tenha sido uma “vítima” de Marx, dominada como que por uma cega paixão que a fez arruinar sua vida em um calvário de dificuldades. Esta é, aliás, a visão expressa na biografia de Jenny mais conhecida no Brasil. Trata-se do livro da jornalista francesa Francoise Giroud “Jenny Marx – ou, a mulher do diabo”. O livro, escrito e publicado na França em 1992 (1996 no Brasil pela Editora Record), embora rico em informações bem articuladas ao estilo de um texto jornalístico, é finalizado de maneira lamentável quando a autora afirma que “Jenny Von Wetphallen, criatura de amor e de fé foi sua (de Marx) primeira e voluntária vítima”.
Não deve causar surpresa o fato de este livro fazer inferências tendenciosas na busca de desqualificar o nome e o legado de Karl Marx fazendo dele um algoz de Jenny. Afinal, biografias são também um campo de batalha ideológico e o livro de Giroud foi escrito no início dos anos 1990 do século passado, no auge da histeria neoliberal que decretava a morte do socialismo e o fim da história com o triunfo do capitalismo. Passados quase um quarto de século, nem o socialismo morreu, nem a história acabou, e o capitalismo cada vez mais demonstra seu esgotamento enquanto alternativa civilizatória.
Estranhamento causa mesmo é o desconhecimento e o quase esquecimento de Jenny Marx e de sua militância pelo próprio campo da esquerda. Militância que estava para além de sua vinculação afetiva com Karl Marx. Vinculação que, sem dúvida, existia e que a manteve ligada a “Karlchen” (**) até o fim de sua vida quando morreu, vitimada pelo câncer, em 1881.
O ano de 2014, que assinalou o bicentenário de seu nascimento, foi pouco lembrado e, menos ainda, comemorado no Brasil e no mundo. Uma injustiça para com esta mulher extraordinária que com sua vida de lutas, em várias frentes, tem muito a ensinar a nós que seguimos compartilhando ideias e convicções que também foram suas.
*Maria Valéria Duarte de Souza é militante do PCdoB no Distrito Federal
(**) “ Karlchen” – diminutivo de Karl; o equivalente, em português a “Carlinhos”. Esta era a maneira pela qual Jenny tratava Marx em âmbito particular. Os amigos e as três filhas o tratavam de “Moor”, o Mouro, em alusão a sua aparência física, mais próxima a de um árabe do que de um judeu alemão.
Quando Jenny e Karl se conheceram, ele era ainda um garoto, colega de escola e amigo de Edgard, irmão mais novo de Jenny. Frequentando a casa dos Von Westphallen, Marx entra em contato com as ideias defendidas pelo Barão Ludwig, pai de Jenny. O Barão, que defendia ideias que, para a época, poderiam ser consideradas até subversivas , ficou fascinado pelo temperamento irrequieto e curioso daquele jovem.
Jenny, além de muitíssimo inteligente e culta, era também muito bela, sendo a mais cortejada jovem de Trier, cidade prussiana que ainda tinha viva na memória a luta de resistência contra a ocupação pelas tropas napoleônicas. O período de ocupação francesa (franzosenzeit) foi definitivamente encerrado em 1814, ano de nascimento de Jenny, quando as tropas francesas foram expulsas pela Befreiunskrieg (Guerra de Libertação). Foi nesse ambiente de efervescência política que Jenny nasceu e cresceu. Segundo o consenso de seus biógrafos, sua educação fora pautada pela tradição, como convinha a uma filha de família aristocrática, recebendo aulas de francês, de música e outras habilidades condizentes com sua classe social. No entanto, sua casa era também ambiente de acaloradas discussões políticas e intelectuais nos saraus e festas realizados sob o patrocínio do Barão Von Westphallen, sem falar na vasta biblioteca onde, na adolescência, Jenny teve acesso a obras de autores clássicos, bem como de autores que expressavam as principais ideias de seu tempo. Voluntariosa e decidida, Jenny possuía opiniões próprias e isso ficou bem claro quando, aos 17 anos, escandalizou a sociedade de Trier rompendo unilateralmente um compromisso de noivado com um militar.
A proximidade entre Jenny e Karl, cultivada a princípio como terna amizade ao longo dos anos em que ele frequentava a casa dos Westphallen, evidenciou entre eles afinidades que permaneceriam ao longo de suas vidas. Uma vida compartilhada que, pode-se dizer, teve início em 1836 quando Karl, então com 18 anos, às vésperas de sua ida para a Universidade, propõe casamento a Jenny, então com 22 anos.
O casamento, de fato, só aconteceria sete anos mais tarde, em junho de 1843 em uma igreja protestante na cidade balneária de Kreuznach, situada a 80 Km de Trier.
Aqui, poderíamos nos deter um pouco mais nos detalhes sobre a verdadeira saga em que se constituiu a vida dos Marx, marcada por dramas e tragédias familiares que caminharam lado a lado com a elaboração de uma monumental produção teórica que permanece atual ainda em nossos dias.
Mas, o objetivo desse pequeno texto, que se pretende também uma homenagem, é destacar o importante papel que Jenny Marx desempenhou ao demonstrar por várias vezes e de forma inequívoca, a compreensão da tarefa histórica dos trabalhadores na construção de uma nova sociedade.
Companheira de Marx por 38 anos, Jenny jamais ficou a sombra de seu marido. Nos meios revolucionários, era respeitada e admirada. Não foi apenas colaboradora na obra de Marx, ao traduzir seus textos para o francês (Marx escrevia em alemão), decodificando inclusive sua incompreensível caligrafia. Era também sua interlocutora, emitindo sempre opiniões aguçadas sobre temas complexos.
Mesmo nos períodos em que experimentaram situações extremas que beiravam a penúria, a casa de Jenny e Karl estava sempre aberta para reuniões politicas ou para abrigar temporariamente fugitivos da repressão que , nas várias cidades por onde passaram, atingia o movimento e a organização política dos trabalhadores.
Muitos desses episódios nos são apresentados com maestria e farto embasamento documental no livro de Mary1 Gabriel: Amor e Capital – a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução (Editora Zahar:2011). Nele, a autora desmistifica uma ideia errônea segundo a qual Jenny seria uma aristocrata entediada que, ao casar-se com Karl Marx, passou o resto da vida a arrepender-se por ter deixado uma condição de opulência. Se sua origem aristocrática é inegável, esta não foi impedimento para que construísse suas próprias ideias . É certo também que teve sempre o apoio de seu pai ( ele e seu irmão Edgard foram os únicos na família de Jenny a aprovar o seu casamento com Karl). Aliás, foi na casa de Jenny, nas intermináveis conversas que tinha com o Barão Ludwig, que seria seu sogro e a quem, posteriormente dedicou sua tese de doutorado, que Karl Marx ouviu pela primeira vez a palavra “socialismo”.
É preciso também que se desconstrua a ideia de que Jenny, a moça “bem nascida” tenha sido uma “vítima” de Marx, dominada como que por uma cega paixão que a fez arruinar sua vida em um calvário de dificuldades. Esta é, aliás, a visão expressa na biografia de Jenny mais conhecida no Brasil. Trata-se do livro da jornalista francesa Francoise Giroud “Jenny Marx – ou, a mulher do diabo”. O livro, escrito e publicado na França em 1992 (1996 no Brasil pela Editora Record), embora rico em informações bem articuladas ao estilo de um texto jornalístico, é finalizado de maneira lamentável quando a autora afirma que “Jenny Von Wetphallen, criatura de amor e de fé foi sua (de Marx) primeira e voluntária vítima”.
Não deve causar surpresa o fato de este livro fazer inferências tendenciosas na busca de desqualificar o nome e o legado de Karl Marx fazendo dele um algoz de Jenny. Afinal, biografias são também um campo de batalha ideológico e o livro de Giroud foi escrito no início dos anos 1990 do século passado, no auge da histeria neoliberal que decretava a morte do socialismo e o fim da história com o triunfo do capitalismo. Passados quase um quarto de século, nem o socialismo morreu, nem a história acabou, e o capitalismo cada vez mais demonstra seu esgotamento enquanto alternativa civilizatória.
Estranhamento causa mesmo é o desconhecimento e o quase esquecimento de Jenny Marx e de sua militância pelo próprio campo da esquerda. Militância que estava para além de sua vinculação afetiva com Karl Marx. Vinculação que, sem dúvida, existia e que a manteve ligada a “Karlchen” (**) até o fim de sua vida quando morreu, vitimada pelo câncer, em 1881.
O ano de 2014, que assinalou o bicentenário de seu nascimento, foi pouco lembrado e, menos ainda, comemorado no Brasil e no mundo. Uma injustiça para com esta mulher extraordinária que com sua vida de lutas, em várias frentes, tem muito a ensinar a nós que seguimos compartilhando ideias e convicções que também foram suas.
*Maria Valéria Duarte de Souza é militante do PCdoB no Distrito Federal
(**) “ Karlchen” – diminutivo de Karl; o equivalente, em português a “Carlinhos”. Esta era a maneira pela qual Jenny tratava Marx em âmbito particular. Os amigos e as três filhas o tratavam de “Moor”, o Mouro, em alusão a sua aparência física, mais próxima a de um árabe do que de um judeu alemão.
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