Por Salomão Ximenes via Blog do Salomão Ximenes em 01/12/2015
Há tempos sabemos que o autoritarismo não se sente muito à vontade na presença das ciências humanas e ciências sociais aplicadas. Estas, por seu método, exigem algo que desconforta governantes de perfil pré-republicano, como é o caso patente do governador de São Paulo na condução da chamada “reorganização escolar”.
As ciências humanas exigem decisões políticas que respondam a conquistas democráticas, como os direitos humanos e fundamentais que impõem compromissos normativos não utilitários ou exclusivamente economicistas às decisões em políticas públicas. Essas ciências também exigem, já que desenvolveram um consistente aparato metodológico e uma massa significativa de estudos, que decisões em políticas públicas sejam baseadas em evidências capazes de demonstrar que os meios pretendidos serão capazes de alcançar os objetivos anunciados, respeitados os limites normativos, as exigências procedimentais de uma democracia participativa e a disposição ao confronto de ideias e interpretações.
Desconsiderados esses pressupostos, o que resta é imposição autoritária, sobredeterminação de interesses escusos inconfessáveis e tentativas de manipulação da opinião pública.
Contrariado frente às exigências republicanas dos novos tempos, o governo de São Paulo foi obrigado a divulgar o estudo que fundamentaria a “reorganização”, após insistência do jornal O Estado de São Paulo (com uso da Lei de Acesso à Informação).
Um grupo de professores e pesquisadores de políticas públicas da UFABC – eu, Marcos Vinicius Pó, Gabriela Lotta, Erika Yamada e Wilson Mesquita de Almeida – decidiu exercitar a curiosidade científica e escrutinar o “estudo”, testando seus métodos, pressupostos e conclusões. Produzimos ao final o relatório Análise da política pública de Reorganização Escolar proposta pelo governo do Estado de São Paulo (disponível nesse link), que hoje chegou ao amplo conhecimento público.
Na matéria que saiu hoje no jornal (Análise de universidade federal contesta reorganização escolar), Ilona Becskeházy bem traduz o sinal dos tempos, sinal confrontado por sucessivos governos paulistas que há vinte anos vem atrasando a chegada da democracia e da razão pública ao maior estado do País: “Não dá mais para fazer política pública sem achar que isso não será detalhado pela população e pelas pessoas que estudam o tema.”
Vou mais fundo. É constrangedor que em um estado com 6 seis excelentes universidades públicas – 3 estaduais e 3 federais -, todas com conceituadas escolas e cursos de pós-graduação de educação e de políticas públicas, o fechamento de mais de 90 escolas e o deslocamento forçado de mais de 300 mil estudantes seja decidido com base em um “estudo” de péssima qualidade, sem debate, talvez porque a produção prévia de uma análise qualificada, como a que produzimos na UFABC, viesse a confrontar os interesses privatistas do “rei”.
Fica evidente a impossibilidade de se corrigir o rumo da tragédia anunciada se a reorganização não for integralmente suspensa, para a qualificação dos estudos, a transparência e o diálogo em 2016 e nos anos seguintes.
Será mais que oportuna a chegada da democracia e da ciência na gestão do ensino público básico em São Paulo. Como sempre, democracia não se concede da cúpula, mas se conquista na luta a partir das classes populares. Autoritários não gostam de ciência, veja-se a longa tradição das ditaduras no ataque às universidades, na perseguição a intelectuais orgânicos ou honestos, na sistemática queima de livros.
O momento não poderia ser mais apropriado já que conjuga ampla e exemplar mobilização social em defesa da escola pública à obrigação de regulamentar no estado, até junho de 2016, a gestão democrática, como determina o art. 9° do PNE.
Abaixo trago o Resumo-Executivo do denso trabalho que fizemos:
RESUMO-EXECUTIVO
Desde a apresentação da Reorganização Escolar o secretário estadual de educação Herman Jacobus Cornelis Voorwald afirmou que uma das bases para a proposta de alteração na oferta de ciclos escolares era um estudo realizado pela Coordenadoria de Informação, Monitoramento e Avaliação Educacional (CIMA) da Secretaria Estadual de Educação, denominado “Escolas estaduais com uma única etapa de atendimento e seus reflexos no desempenho dos alunos”, que mostraria um melhor desempenho das escolas de ciclo único.
A presente Análise da proposta de Reorganização Escolar está dividida em duas dimensões: o estudo que a embasou e as questões que ainda estão nebulosas em relação à reorganização enquanto política pública. Concluímos que o estudo não apresenta elementos para fundamentar, nem sequer sugerir, as conclusões anunciadas pelo Secretário, pelos seguintes motivos:
  1. Não é mostrado nenhum embasamento teórico e/ou empírico que indique os mecanismos causais pelos quais a oferta de ciclos pode afetar a gestão e o desempenho escolar.
  2. A escolha da variável de desempenho não está justificada. Por que apenas o Idesp? Por que apenas os resultados de 2014?
  3. O estudo desconsidera outras variáveis importantes segundo a literatura da área de educação para explicar o desempenho escolar.
  4. Não é feito nenhum tipo de controle, qualitativo ou estatístico, para efetuar a comparação das escolas exclusivas e não-exclusivas, comprometendo ainda mais as ilações feitas entre oferta de ciclos e desempenho.
  5. Há inconsistências e indefinições no estudo quanto aos procedimentos e critérios para classificação das escolas, não permitindo aos leitores compreender em mais detalhes a comparação realizada.
  6. Não é mostrada nenhuma forma de significância estatística ou de cuidados quantitativos para os resultados da análise.
Além dessas objeções, há um conjunto de questões não respondidas na implementação da política pública de reforma educacional, relacionadas à mudança do perfil das escolas, aos aspectos administrativos, aos impactos na estrutura da rede escolar e ao acompanhamento e manutenção dos indicadores de desempenho. Todas as ações na área educacional devem ser tomadas com muita cautela, reflexão, transparência e debate público, embasado em evidências sólidas, uma vez que as consequências são verificáveis apenas no médio e no longo prazo. Todavia, não conseguimos verificar materiais ou evidências que detalhem os desdobramentos da atual ação e as medidas complementares que certamente serão necessárias. Dessa forma o debate fica inviabilizado e pouco transparente, o que aumenta consideravelmente a chance de que a política encontre problemas inesperados e dificuldades na sua implementação, podendo gerar consequências negativas para os estudantes e demais envolvidos.
Por esses motivos, recomendamos à Secretaria de Educação:
  1. Qualificar e aprofundar o embasamento técnico e os estudos da proposta de Reorganização Escolar.
  2. Aumentar a disponibilidade de informação sobre a Reorganização, detalhando a proposta e respondendo às questões levantados no item 3 dessa análise e outras que venham a ser apresentadas pelos atores e grupos envolvidos.
  3. Uma vez que tenha produzido e disponibilizado de forma transparente os embasamentos técnicos e os estudos de Reorganização Escolar, ampliar o debate público sobre a medida, propiciando e estimulando a participação de toda a comunidade.
Entendemos que a complexidade da decisão a ser tomada deve se refletir na necessária qualidade dos estudos que a embasam e são disponibilizados ao debate público, assim como no aprofundamento da discussão dos seus detalhes e desdobramentos. Aos autores da presente análise fica evidente que as recomendações feitas nesse sentido só poderão ser atendidas se a Reorganização Escolar pretendida for adiada, deixando de ser aplicada no ano letivo de 2016.
Tais ações, articuladas à não implementação imediata das medidas anunciadas, contribuirão para aperfeiçoar a proposta e para engajar os atores que serão envolvidos e afetados pela Reorganização, permitindo uma construção conjunta, transparente e mais refinada dos rumos e do futuro da educação no estado de São Paulo.

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