Via Laboratório de Sensibilidades

SOB DOIS MARÇOS

Era uma vez março de 1964. Agora é um março de 2016.

Acontecimentos ditos históricos são dificilmente comparáveis, seja com o intuito de tratar empiricamente suas semelhanças e diferenças, seja o de submetê-las a um esquema racional abrangente. Sempre surgem detalhes perturbadores da percepção ou do raciocínio. Se isso acontece aos que se dedicam à história dita maior, à história envolvente, o que dizer então do ponto de vista de quem vive, olha, ouve… e apenas balbucia do ponto de vista de um lance qualquer de histórias contidas? Pode-se dizer, pelo menos, que há infindáveis séries de dificuldades para exprimir algo nesses dois níveis, o das histórias envolventes e o das histórias contidas.

Do ponto de vista da história envolvente, é fácil encontrar o registro de que março de 1964 foi um dos períodos cronológicos decisivos no processo antidemocrático, que culmina com o golpe militar de 1º de abril daquele ano. E hoje? O que a história envolvente já pode registrar é que uma poderosa midia jornalística e televisiva, cúmplice e potencializadora do exercício exorbitante de um setor da magistratura e de forças policiais, milita, espetaculosamente, em prol de um processo antidemocrático de redução do prestígio de representantes políticos de forças socialmente inovadoras.

Pois bem, o que aqui pretendo exprimir é apenas algo ligado a um pedaço de história contida, historinha que, neste preciso momento, pinguepongueia entre dois marços, o de 1964 e o de hoje, março de 2016. Que algo seria esse? É possível que não seja mais do que um sentimento. Ou talvez ele seja um pulsar que minha consciência toma como sentimento, mas que, nas cavernas que me constituem, ele opera como intensidades capazes de qualquer coisa.

De qualquer coisa que promova a defesa de nossa débil democracia, débil, sim, mas sem a qual seremos vítimas do que há de pior hoje, março de 2016, no congresso, nas forças policiais, na magistratura, no campo jornalístico e televisivo, nos predadores do meio ambiente, nos maus patrões e senhoras fascistóides, nos promotores da imbecilidade, nos ressentidos contrários a conquistas populares, nos assaltantes de merendas escolares, nos que ofendem nossos artistas, nos que corroem a escola pública, universal e gratuita, nos machistas, nos racistas, nos homofóbicos, nos exploradores e entristecedores da vida alheia, nos que buscam criar alegria através do vilipêndio e maltrato de uma pessoa, de uma família como o que está acontecendo hoje, 4 de março de 2016, em Congonhas.

Esse sentimento seria o mesmo que vivi em 1964? Há uma quebra na linha. O ardor que me levava a lutar pela democracia naquele passado era o de quem sentia como equivocados o inimigo militar golpista e as mulheres marchadeiras que o apoiavam nas ruas de Araraquara. Liderei uma greve estudantil contra o golpe. Alguns poucos colegas foram contrários à greve, mas não gritavam em apoio ao golpe. Eu sentia, com certa alegria, que não propiciaríamos ao golpe uma juventude com estampa autoritária. 

De um tempo para cá, apesar de constatar que dificilmente encontro um jovem autoritário na universidade pública na qual ensino aqui em Campinas, fui perdendo aquele sentimento de quase certeza de que não teremos jovens dispostos a seguir a canalhice que vem se armando contra a democracia brasileira. 

Como idoso, sei o quanto precisamos de jovens democráticos. Preciso acreditar que eles não vão se imbecilizar, preciso acreditar que eles saberão cultivar boas relações e não promover o ódio entre brasileiros, entre brasileiros e outros povos. Preciso acreditar que eles não personifiquem o pior dos futuros. Não por mim, vejam bem, mas por eles mesmos e por meus netos e netinhas, pela imensidão de netos e netinhas, entes de um futuro que se decide agora, a cada dia, a cada manifestação libertária.

Ainda sem bengala que me ampare, mas tomado por um libertário sentimento democrático anti golpista, irei às cinco horas da tarde a uma manifestação aqui em Campinas.

Abraços do Orlandi

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