Sobre a Miriam, Guimarães Rosa e o Brasil que muda lentamente
Por Luana Tolentino, especial para o Viomundo em 05/02/2016
Se estivesse entre nós, hoje a Miriam, minha irmã, completaria 35 anos. Não tem sido fácil conviver com a ausência física de quem se faz presente o tempo todo, mas a convicção de que em algum momento voltaremos a partilhar a vida me anima e revigora.
Enquanto isso não acontece, me alimento das lembranças que ela deixou: nossas incontáveis idas ao Mineirão para ver o time do Galo jogar, os almoços especiais de domingo, a generosidade sem tamanho, e a maior lição de todas: o câncer, ou qualquer outra doença, podem trazer grandes aprendizados. Para aqueles que são vitimados, e também para os que estão em volta. Por mais dolorosos que sejam, esses processos que fazem parte da nossa existência podem ser encarados com coragem, resiliência, e até com um sorriso. Foi exatamente isso que a Miriam fez.
Mexendo em alguns objetos que eram dela, encontrei Os cem melhores contos brasileiros do século, livro organizado por Ítalo Moriconi. Em meio à centena de textos, escolhi reler o belíssimo “Sorôco, sua mãe, sua filha”, do grande Guimarães Rosa, escritor preferido da minha irmã. Assumo que sempre invejei a facilidade que a Miriam tinha para ler a obra do médico nascido em Cordisburgo, interior de Minas. Para mim, passar horas debruçada sobre os neologismos de Rosa sempre foi uma tarefa inglória.
Para quem não conhece,“Sorôco” foi publicado originalmente em Primeiras Estórias, livro de 1962.
O conto narra a trajetória de um homem muito pobre que tem como missão levar a mãe e a única filha para um hospício na cidade de Barbacena. O mesmo no qual foi perpetrado um dos capítulos mais tristes da história do país. Conforme consta no premiado Holocausto Brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, no Hospital Colônia, nome dado ao sanatório, mais de 60 mil pacientes vieram a óbito com o aval do Estado, dos médicos, dos funcionários e de familiares.
“Sorôco” fala de angústia, de separação e de despedidas. Apesar do enredo extremamente triste, arrisco-me a dizer que nas páginas do conto está uma das frases mais bonitas de toda a Literatura Brasileira: “Para o pobre, os lugares são mais longe.”
Embora tenha sido escrito há mais de meio século, a frase de Rosa permanece atual. Nascer pobre no Brasil ainda significa ter direitos fundamentais negados, ser submetido ao trabalho escravo ou a jornadas extenuantes, frequentar escolas com ensino de baixa qualidade, enfrentar diariamente o transporte público precário, ser penalizado pelos ajustes fiscais, viver em bairros segregados, ser alvo da violência policial, enfrentar longas filas para conseguir acesso a saúde, e tantas outras mazelas que não caberiam nesse texto.
Por outro lado, é inegável que a vida de quem nasceu pobre como o personagem de Guimarães Rosa melhorou muito nos últimos anos. Amparada por uma bibliografia dos campos histórico, sociológico e econômico, e por minhas andanças Brasil afora, posso dizer que as políticas públicas implementadas, principalmente, nos oito anos de governo do ex-presidente Lula fizeram com que os caminhos para a conquista do direito de ser e de existir, enquanto cidadãos de fato, estão sendo encurtados.
O que explica em parte o ímpeto da “grande” mídia para destruir Lula e todo o seu legado.  Já escrevi sobre isso em outras ocasiões, mas continuarei a escrever, afinal de contas atravessamos um momento em que, embriagados pela cachaça midiática e pelo ódio, muita gente se recusa a enxergar que, apesar dos problemas evidentes, vivemos um outro tempo.
Esta que aqui vos escreve, por exemplo, trabalhou como empregada doméstica e cresceu em um lar onde as mulheres não tiveram acesso à educação formal. Dona Nelita, minha mãe, frequentou a escola por menos de dois anos. Dona Brasilina, minha avó paterna, se matriculou em um curso noturno de alfabetização aos 78 anos de idade. Foi lá que ela aprendeu, com muita dificuldade, as primeiras letras. Dona Joana, com quem aprendi a amar o Clube Atlético Mineiro, conhecia apenas os números do jogo de bicho.
Hoje a minha mãe estufa o peito para dizer que Dennis, meu irmão mais velho, é enfermeiro. Para ela, o Dennis é “quase um doutor!”. Dona Nelita adora contar para todo mundo que “a Luana é professora, faz palestras e escreve livros!”. Da Miriam, de quem quase não fala, ela se orgulha ao dizer que, embora tenha feito Nutrição, gostava mesmo era de ajudá-la na cozinha do pequeno restaurante no qual é a dona.
Nas últimas semanas, acompanhei com alegria e emoção as notícias sobre os jovens, principalmente do Nordeste, que, com a aprovação no Enem, a partir de agora terão a oportunidade de cursar o ensino superior em universidades públicas. Sim. Os mesmos nordestinos que nas últimas eleições, numa demonstração odiosa de preconceito, foram chamados de burros e acusados de serem responsáveis pelo atraso do país.
Além das conquistas, me encheu de esperança o discurso forte e consciente dos estudantes. As palavras que transcrevo a seguir são do Fábio Constantino, morador de Assu, interior do Rio Grande do Norte, e agora calouro do curso de Medicina da UFRN:
“Quero fazer medicina, me especializar em cardiologia, voltar para o interior, ajudar as pessoas mais necessitadas e continuar lutando pelo social, pelo justo, e contra o ideal de superioridade de certas pessoas sobre outras pessoas. (…) Eu sou um negro, pobre, do interior, e esse não é o estereótipo de pessoas que tiram nota mil no Enem. São pessoas brancas, pessoas de classe média alta, e pessoas das capitais. Esse é o estereótipo que se repete sempre.”
Na edição de 26 de janeiro, em uma capa histórica, o Estado de Minas, um dos maiores jornais do país, estampou com letras garrafais o sucesso dos candidatos que ingressaram na Universidade Federal de Minas Gerais através do sistema de cotas.
De acordo com dados da própria Universidade, os cotistas de 2016 obtiveram notas superiores às dos não cotistas que foram aprovados na instituição em 2013, último ano em que a UFMG adotou o vestibular como processo seletivo para que estudantes conseguissem uma vaga em um dos seus 75 cursos. Esses dados jogam por terra o discurso de que as cotas, política de Ação Afirmativa adotada no Brasil a partir de 2003, provocariam a queda da qualidade do ensino.
Ainda sobre a matéria do Estado de Minas, entre as entrevistadas estavam garotas com trajetórias de vida muito semelhantes: negras, pobres, filhas de domésticas semi-analfabetas, e com o discurso afiado: “As cotas nos possibilitam o acesso a algo que é nosso”, disse Talita Barreto, aprovada no curso de Engenharia.
Há alguns dias, conversava com meu amigo Luiz sobre tudo isso. Entre uma caipirinha e outra, ele, que também é historiador e filho da pequena burguesia carioca, dizia que, num passado recente, essas revoluções diárias eram praticamente impossíveis.
Durante o almoço, a vodca e a beleza estonteante da Baia de Guanabara não inebriaram as nossas vistas. Conversamos sobre o clima de incerteza, sobre a crise política que parece não ter fim e sobre os erros cometidos pela presidenta Dilma e pelo PT.
Falamos também sobre o ódio de classes que essas transformações despertam naqueles que ainda acham que o país é uma verdadeira capitania hereditária, cujos mandatários e seus familiares devem gozar de todos os privilégios. Ódio este disseminado sistematicamente por uma imprensa amoral, que reverbera principalmente nas redes sociais, nas ruas, nos aeroportos, nos shoppings, nas universidades, e em todos os lugares que até pouco tempo eram de uso exclusivo de uma parcela ínfima da população.
Mesmo assim, Luiz e eu nos demos o direito de brindar esse Brasil que aos poucos vai ganhando novos protagonistas. Brindamos um Brasil que muda. Lentamente. Mas muda.
Se eu tivesse oportunidade de ver a Miriam agora, nesse instante, eu diria: Minha irmã, que saudade de você! Ao Guimarães Rosa eu diria que, com muita luta e licença poética, todos os dias reescrevemos a frase de “Sorôco, sua mãe, sua filha”. Haverá um tempo em que, para o pobre, finalmente os lugares ficarão ainda mais perto.
Luana Tolentino é professora, historiadora e ativista dos Movimentos Negro e Feminista.

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  1. Texto belíssimo em dias de tormenta midiática, em que a pauta é tirar a qualquer custo o pouco que conquistamos. Parabéns querida, seu texto foi como uma lufada de ânimo!

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